A figura encarquilhada caminha em direcção a nós com o vagar típico da calma rústica que nos rodeia. Notam-se as dificuldades de locomoção. Terá mais de noventa e cinco anos - informa um dos presentes.
Dobrado sobre a gajata que o auxilia na caminhada, dirige-se ao grupo e saúda:
- Bôs tardes nos dê Deus!
- Deus nos dê bôs tardes! - respondemos em uníssono.
Perscruta-nos com atenção demorada. Estranha a minha pessoa e indaga:
- Quem é este senhor? Não o estou a conhecer.
Explicam-lhe quem eu sou.
- Ah... fui colega do seu paizinho, que no céu esteja. Éramos muito amigos. Que seja por muitos anos...
- Obrigado. - retorqui a amabilidade.
- É servido? prove um môrdo. Olhe que foi a minha mulher que fez o folar. E a cebola é da minha horta. - atirou o anfitrião
- Hum... - pigarreou - bem sabes que já não tenho dentes, nem saúde pra tudo. Até o vinho já me tiraram... - largou com nítida tristeza no olhar. Recompôs o semblante e lançou uma farpa afiada em direcção ao dono da casa:
- Olha lá, se fosse pra descabar a binha, não tinhas tanta gente! -largou entre sorrisos dos circunstantes. Virou-se novamente para mim e disse:
- Eu e o seu paizinho fizemos muitos turnos juntos! Era um bom homem! Ele chegou a falar-lhe de um colega que nós tivemos e que tinha a mania de beber a água em que demolhava as casulas?
- Não! - respondi, com a curiosidade aguçada pela natureza do estranho ritual.
- Era um tipo muito achacado às doenças. Tudo se lhe pegava. Um dia, descobriu que era diabético. E alguém lhe meteu na cabeça que a água de demolhar as casulas, bebida fria, fazia bem aos diabetes. Aquilo era amargo como o dianho. Mas ele emborcava meio litro daquela mistela todas as manhãs. Em jejum!
- E resultou? - perguntei.
- Nunca soube.
- Mas, ele morreu dos diabetes?
- Morrer, morreu. Do quê, não sei! - rematou com uma risada cavernosa, que lhe provocou um ataque de tosse.