À boleia do amigo Mário Correia, desloquei-me no pretérito dia 31 de Agosto à localidade de Fornos, concelho de Freixo de Espada à Cinta, onde decorriam as festividades anuais, em honra do Senhor da Rua Nova. O motivo especial da visita prendia-se com a vontade de ver actuar as tocadoras de pandeiro (uma espécie de adufe). Porém, esta visita haveria de motivar nova incursão à bonita aldeia, na demanda do estranho ritual das "Sécias". Quando me falaram desta tradição, acenderam-se logo as luzes da curiosidade, pois assemelha-se em tudo à festa de S. Membrum, que decorria em Vilarinho dos Galegos e de que falei no livro que escrevi sobre esta aldeia. Posto isto, voltámos ao local no dia de ontem, à tarde, para tirar apontamentos e algumas fotos.
O investigador local, Amadeu Ferreira (não confundir com Amadeu, de Sendim), menciona esta festividade no livro "Quem Vê o Seu Povo". Curiosamente, começa por afirmar que este ritual não tem nada de "mariquice" (fiquei mais descansado...) e associa-o ao facto de as mães não deixarem as filhas dançarem com os rapazes. E então, estes para se vingarem daquelas, vestiam-se como mulheres e organizavam danças com outros rapazes, parando à porta das raparigas casadoiras. A homenageada saía de casa com figos secos, amêndoas e uma garrafa de vinho. Também trazia uma galha de manjerico que ciosamente regava durante o ano (curiosamente, ontem disseram-nos que o manjerico servia de perfume, para disfarçar o mau cheiro) que entregavam aos rapazes e "raparigas". Nos dias que correm, a dança ocorre exclusivamente no terreiro frontal à capela do Divino Senhor da Rua Nova (cuja construção data do séc. XVIII).
A propósito desta curiosa denominação do santo, comentei com as senhoras que o topónimo "Rua Nova" é normalmente associado a locais de habitação de judeus. E a resposta veio pronta: "nós aqui somos judeus!" E, de facto, uma pequena viagem pelas ruas da aldeia permite observar várias marcas arquitectónicas normalmente associadas à herança judaica (por mais que o ilustre Professor Adriano Vasco Rodrigues defenda que tal coisa não existe, a tradição oral persiste em contradizê-lo. E como em matéria de investigação histórica não existem "vacas sagradas", mantenho na íntegra o que tenho dito e escrito acerca deste tema).
Mas, voltando à festa das "Sécias", atentem no que se passava em Vilarinho dos Galegos, no mês de Setembro: "Durante esta festa de carácter brejeiro e profano,
o povo bailava e bebia abundantemente. As danças eram executadas à volta da
igreja e pelas ruas da povoação, ao som de pandeiros, em “ensurdecedora
algazarra”. Operava-se a inversão dos valores tradicionais e as
mulheres cavalgavam os homens." (Antero Neto, in "Vilarinho dos Galegos e os seus mascarados"). Note-se a presença dos pandeiros. E a inversão de valores sociais. Não é possível ser uma mera coincidência. Perante isto, fico convencido que a dança das Sécias não é nada mais, nada menos, que uma tradição de raiz pagã, com origem nas "pandorcadas", celebradas em honra dos deuses Dioniso e Baco, que a Igreja Católica na impossibilidade de combater, assimilou de forma inteligente ao seu calendário litúrgico.
Para finalizar, deixo aqui um abraço ao meu amigo Amílcar Jorge e às senhoras (tocadoras de pandeiro e cantadeiras) que tão simpaticamente nos receberam e explicaram a dinâmica da festa.