" Nunca como agora se assistiu à valorização das raízes. Coincidindo com o abandono massivo do interior e o consequente engrossamento dos núcleos habitacionais do litoral, assiste-se a uma busca do que é genuíno, autêntico, tradicional e rural. Neste contexto, ganham protagonismo certas manifestações dessa ancestralidade, tais como sejam, por exemplo, as festas de solstício.
O concelho de Mogadouro conserva ainda vivas algumas manifestações do solstício de Inverno. Até há cerca de cem anos atrás, existe notícia destes eventos em grande parte das aldeias do concelho. Hoje em dia, apenas quatro mantêm bem viva a tradição: Bruçó, Bemposta, Tó e Vale de Porco.
"Chocalheiro" - Bemposta
Anteriores aos romanos, por estes assimiladas e posteriormente cristianizadas, as festas do solstício de Inverno tomam lugar no período que medeia entre o Natal e o primeiro de Janeiro (algumas, entretanto desaparecidas, também saíam à rua no dia de Reis).
Como é sobejamente sabido, o dia 25 de Dezembro nem sempre foi assinalado como a data do nascimento de Cristo (foi o papa Liberus, em 354, que começou a tradição). Este dia foi associado ao advento do Menino por uma questão de conveniência. Desde tempos imemoriais que o solstício de Inverno é comemorado pelas diversas culturas nesta altura.
Mitra, a incarnação do Sol, a Luz da verdade, nasceu numa caverna, filho de mãe virgem, visitado por três soberanos estrangeiros, no dia 25 de Dezembro, pelo menos 1400 anos antes de Cristo. Os gregos, e depois deles os romanos com as suas “saturnálias” entregavam-se, nesta época do ano, a práticas de exaltação da passagem do ano velho para o ano novo. Trocavam presentes entre si e organizavam festas onde reinava a desordem, apelando ao Sol pela fertilidade da mãe Natureza.
As festas de Bruçó, Bemposta, Tó e Vale de Porco têm diversos elementos comuns. O primeiro, e incontornável, é a época. Em Bruçó, os “Velhos” saem à rua no dia 25 de Dezembro. Tal como o “Chocalheiro” de Vale de Porco. O "Chocalheiro" de Bemposta sai no dia 26 de Dezembro e no dia 01 de Janeiro. O “Farandulo” de Tó sai no primeiro de Janeiro. Em Bruçó, tentou recuperar-se recentemente a figura do Chocalheiro, desaparecida há muito, mas da qual Santos Júnior deixou clara notícia. Nesta aldeia, há ainda notícia de uma outra figura, análoga à que existia na vizinha Lagoaça, que se chamava “Zangarrão” e que saía no dia de Reis.
O "Velho" e a "Velha" - Bruçó
Simultaneamente rituais de passagem para os rapazes das aldeias, estas festas eram igualmente eventos de exorcização dos espíritos maus, apelando ao surgimento das forças benéficas da Natureza, que haveriam de dar vida a um novo ciclo de prosperidade e fertilidade, encerrando o ciclo anterior.
O "Soldado" e a "Sécia" - Bruçó
Se atentarmos nos diversos elementos que caracterizam estes mascarados, facilmente constatamos, por exemplo, o seu carácter apotropaico. O “Chocalheiro” percorre toda a aldeia, pedindo esmola para o Menino, ao mesmo tempo que, com o som que produz, expulsa os espíritos malignos da comunidade. A cor vermelha, abundantemente utilizada nas indumentárias, também não é despicienda. Desde sempre que a esta cor é associada uma finalidade apotropaica.
O "Chocalheiro" - Bemposta.
As máscaras têm cornos e representação de serpentes. Os cornos estão associados ao Touro, símbolo da força e da virilidade. A presença da serpente contém em si duas simbologias: por um lado, os ofídios largam a pele e hibernam. Representam na perfeição a morte do ano velho e a sua substituição pelo ano novo. Por outro lado, estão igualmente associadas à fertilidade pela sua forma fálica (em apontamento lateral, refira-se que o poeta romano Avieno, na sua “Ora Marítima”, indica as terras altas do Norte, como a terra do povo Ofi – o “Povo das Serpentes”. O que, a juntar a algumas gravuras serpentiformes referenciadas na zona, não deixa de ser um dado curioso).
O "Farandulo" - Tó
Alguns destes eventos são, marcadamente, rituais de passagem. O exemplo do Farandulo de Tó é significativo. Existe um ciclo de 4 anos, ao longo dos quais o mesmo rapaz incarna o “Moço”, depois, no segundo ano, a “Sécia”, no terceiro ano o belicoso “Farandulo” e, no quarto ano, o “Mordomo”, figura já completamente integrada na sociedade local.
O "Moço" e a "Sécia" - Tó
Este tema é rico, extremamente interessante e dá pano para mangas. Tenciono voltar a ele num contexto mais alargado e rigoroso. Em jeito de desabafo final, deixo aqui um comentário crítico à excessiva mercantilização, e descontextualização destes eventos que tem lugar através de desfiles promovidos nos grandes centros e representações artificiais promovidas para as televisões, quando por estas solicitadas. Toda a promoção é pouca. O caminho passa pela crescente valorização e divulgação do nosso património imaterial. Para que os visitantes sedentos destas tradições únicas nos visitem. Se levarmos a montanha a Maomé, Maomé já não vem à montanha. O exemplo dos Caretos de Podence é a materialização de tudo aquilo que se deve evitar. Se eu os posso ver, num qualquer mês do ano, numa qualquer cidade, por que razão me irei deslocar a Podence? Estas manifestações, mais próprias de bandas de rock'n’roll, bastardizam e negam a essência dos rituais originais."
Texto e fotos: Antero Neto.