Homens de Granito –
Apresentação
Enquanto
apresentador dos Homens de Granito,
quero dizer o seguinte:
Porque
nenhuma obra pode ser dissociada do autor, dividi esta minha intervenção em 2
partes. Na primeira tentarei dar uma imagem do autor, e muito ficará por dizer,
evidentemente, na segunda tentarei abordar da obra Homens de Granito, não só pondo em evidenciando alguns aspectos
técnicos, mas também pelo lado das emoções que se me revelaram ao ler esta
obra.
I-Parte
ANTERO Augusto NETO Lopes é natural de Bruçó, concelho
de Mogadouro, onde nasceu em Junho de 1969.
É licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra.
É Advogado. Entre outras actividades, foi professor, autarca e dirigente associativo.
É Advogado. Entre outras actividades, foi professor, autarca e dirigente associativo.
É membro da Academia de Letras de Trás-Os-Montes.
Tem publicadas as seguintes obras:
"Serões do Planalto" (contos), 2006;
"Bruçó –
As Memórias Paroquiais de 1747 e 1758. Notas Históricas e Etnográficas"
(ensaio), 2010;
"Toleradas em Mogadouro – O Suicídio de Maria
Carçôna" (ensaio), 2012.
Colabora esporadicamente
com a imprensa regional e com as revistas "Epicur" e "!Bô".
Mantém o blogue de divulgação local: “Ho Mogadoyro”.
Além deste livro de
contos, que hoje aqui apresentamos, prepara-se para editar, também na Lema d’Origem, um levantamento histórico
das marcas judaico-cristãs gravadas nos locais de habitação, pelos Judeus
Marranos, durante o período da Inquisição, em todo o Concelho de Mogadouro.
II-Parte
A obra Homens de Granito, está dividida em duas partes distintas. Na
primeira parte predominam contos ficcionados, na segunda o autor presta contas,
que é como quem diz, presta homenagem a gente que ele conheceu/conhece e a quem
reconhece verdadeira humanidade. Esta segunda parte podem até considerar-se
micro-contos, no fundo, são linhas de carácter de gente humilde, sem escola, mas
com a escola de toda uma vida. Gente rija, de espinha erguida, gente que sobreviveu
pelos amargores do trabalho árduo, pelas bofetadas da vida, pela rudeza das
serranias e pelo rigor do tempo. Veja-se como ele a caracteriza:
(...) Olhos de granito, cravados em rostos de xisto,
petrificados pela Medusa do tempo, que escavou neles sulcos indeléveis que
desnudam a rudeza das suas existências.
Bibliotecas vivas que alimentam um universo fantástico e
fazem perdurar a memória de um povo. Assim são os homens da minha aldeia.
Um punhado de azeitonas, um naco de trigo, um copo de
vinho, uma adega e boa companhia são quanto baste para algumas horas
prazenteiras a sorver histórias e contas de memorar e legar aos vindouros.
(...)
Portanto, desde já fica patente que estão perante uma obra
de cariz rural, mas não está falha de universalismo humano, bem pelo contrário.
Digo isto, porque tenho sempre a sensação, e não sei explicar porquê, que nos
tempos que vivemos há um certo estereotipo negativo deste tipo de narrativa,
por se considerar ser incapaz de atingir a universalidade que sempre se procura
na literatura. Seja como for, impressão minha ou não, nesta, isso não acontece,
bem pelo contrário! E, para justificar isso mesmo, digo apenas que a alma
humana não tem padrões, nem usa carimbos. Somos todos iguais, com maior um menor
conhecimento científico, com mais ou menos percepção do mundo que nos rodeia,
todos sentimos alegrias, dores, inveja, paixão, todos nós somos magnânimos,
mesquinhos... todos nós temos medo do desconhecido, todos nós sentimos amor e
ódio, paixão e ternura... Veja-se a ternura do “Marreco”, figura fisicamente
grotesca, mas simultaneamente ternurenta:
Tinha crescido como Marreco e como tal haveria de fenecer. Respondia
apenas pela nomeada que lhe tinham colado na infância devido à sua fisionomia
inclinada, que parecia prestar vassalagem perene ao mundo. O Marreco era ademais
um ser dotado de pouca inteligência. Pelo menos era assim que pensavam os seus
conterrâneos. Na comunidade era tido como um pobre de espírito, que à
semelhança dos bobos da corte entretinha com as suas graçolas descabidas quem
se dava ao trabalho de o escutar.
O
seu público preferido eram as crianças. De uma maneira geral, ninguém mais
perdia tempo com o Marreco. A figura castiça e o trato irrequieto
emprestavam-lhe as características necessárias para cativar a audiência
infantil. O facto de já ser adulto, mas ao mesmo tempo mais frágil que uma
vulgar criança, transformou-o no alvo predilecto das brincadeiras dos petizes,
que gozavam à tripa forra com o indigente.
Ou
então, se quiserem outro exemplo desse universalismo humano, vejam a descrição
do António e do Afonso, jornaleiros que se sentem ambos apaixonados pela Anita:
António
e Afonso desunhavam-se para ver quem acabava a primeira assucada e abria mais
gabeleiros. Este despique pouco habitual não deixava de causar alguma
estranheza na mente inocente de Afonso. Mas não queria ficar mal visto pelos
outros. Só o António conhecia a verdadeira razão de tanto afoitismo. Ele queria
brilhar aos olhos de Anita. Queria parecer o mais valente e determinado dos
segadores, para que um dia, quando ela tivesse mesmo que escolher, escolhesse o
mais forte. Aquele que lhe garantiria, pela força de trabalho, maior fartura em
casa. Para ele, tinha começado ali, com a confidência do amigo, uma verdadeira
compita pela conquista dos favores e graça da jovem. O melhor venceria. E ele
queria ser o melhor.
Este
trecho, além de evidenciar esta forma de amar, e que nesta leitura pretendi evidenciar,
eventualmente para alguns estranha, considero-a riquíssima do ponto de vista
humano e dá-me a deixa necessária para realçar a dureza deste sentir: (...) era preciso ser o melhor para que
fosse escolhido, e não faltasse a fartura em casa (...), diz o autor.
Faz-nos lembrar a Teoria Darwiniana, e a sua Luta pela Sobrevivência. E era de facto assim, no rigor da vida
sobreviviam os mais fortes.
Ao
terminar a leitura desta obra, a primeira sensação que tive foi ter acontecido
um diálogo com a história. Não a história dos grandes feitos, dos grandes
estrategas, dos pensadores… É a história, da história inteira, a história do
corpo e da alma das pessoas que vivem, pensam, amam e se exprimem de forma
simples, sem a padronização que a escola nos ensina. No fundo, é também a
história da edificação da língua portuguesa. É a história de um linguarejar foneticamente
autêntico, a história de um linguarejar lexical que está prestes a terminar e
que urge preservar porque todos essas pedras possuem uma riqueza cultural incalculável
e são os alicerces dessa grande façanha que é a língua portuguesa. Dito de outra forma: não há futuro sem memória, é um lugar comum, e
ele, autor, ciente desta grande verdade, vai-nos tecendo, pedra sobre pedra,
palavra sobre palavra um grande memorial às gentes que existiram sem nunca
terem existido, um templo com uma dimensão paisagística, sentimental, cultural…
que só a magia das palavras interligadas nos permite fazer. Veja-se:
Veja-se
o início do conto O Sobreiro:
Entrou-me pelo escritório
precedido de grandes salamaleques:
– Vocelência dá licença?
– Entre se faz favor. Sente-se.
Então, diga lá ao que vem.
A figura, de aparência insignificante, meio mirrada, com
o queixo estribado na gajata, transparecia um olhar de estranha altivez.
– Olhe, tenho oitenta e oito
anos e é a primeira vez que entro num escritório de advogado.
– Pois eu já entrei muitas
vezes! – atirei, para criar boa disposição – então, e o que é que o traz cá?
– Foi vocelência que me
escreveu uma carta.
– Ah! – exclamei, sem me
lembrar muito bem de que carta estaria ele a falar.
– Foi por môr de um sobreiro,
nos “Tchaugarços”!
– Ah, pois...
– Olhe que ele é um ladrão! O
senhor doutor já lhe apanhou o dinheiro? Ponha-se a pau com ele. Olhe que já
vigarizou muitos…
– Ah é?
– O senhor pode não acreditar,
mas atente no que lhe eu digo.
E começou então com um extenso rol de acusações contra o meu
cliente, fazendo-o possuidor de um espírito maléfico, altamente pernicioso para
a sociedade em geral e para a aldeia em particular. Ele tem os da junta
comprados... Ele até prá mulher é falso...
– O senhor doutor é casado?
– Sou sim.
– Então, estime- a (...)
Há neste pequeno texto uma certa
sonoridade das palavras e uma certa forma de expressão muito típica e muito autêntica.
Diria até que há um certo caracter polifónico e melodioso nas palavras e nas
frases, que aqui realço, e que é patente ao longo do texto, mas não é único. Se
considerarmos a obra como um todo, ela
possui também essa polifonia muito própria da região. Emprego aqui a palavra “polifonia”,
não com o sentido que o termo pode adquirir, numa primeira abordagem, mas
porque a obra contém, em si mesma, muitas vertentes do mesmo monte, ou se
quiserem, muitas abordagens simultâneas e integradas do sentir das gentes do planalto
mirandês: Há nela sentimentos, história, património linguístico... toda essa
abordagem humana está integrada nela e fazem com que os Homens de Granito tomem uma dimensão que ultrapassa a mera
narrativa ficcional. Considero que não é mais um livro de contos de um
determinado espaço/tempo. É muito mais do que isso. Há nele uma dimensão sociocultural
que não pode, nem deve ser descurada e, nesse sentido, atrevo-me a dizer que há
até alguma intervenção social, como, eventualmente, existirá em muita boa
literatura sem este cariz rural. E, desta forma concluo, e reafirmo a tal
impressão que me vai pela cabeça e que atrás ficou expressa. Ambas as narrativas
estão ao mesmo nível e merecem o mesmo tratamento. Ponto.
Nos Homens de Granito, o autor, possui a consciência plena da grandeza e
da pequenez que encerra qualquer ser humano. E não há melhor exemplo que o
conto da “Redenção”. Não o vou explanar para me fazer compreender, terão que o
ler, vou, no entanto ler a caracterização das 2 personagens, em oposição, onde esse
dualismo, no final do conto, atinge o seu grau mais elevado:
Marcolino tinha ficado incapacitado para o trabalho mercê
de um acidente com a motorizada, que levou à amputação da perna direita. O
outrora homem vigoroso e dedicado ao trabalho e à família, tinha dado lugar a
um inútil amargurado, que passou a afogar as mágoas nas tavernas, enquanto
jogava aquilo que tinha e o que não tinha.
(...)
Elisa, já não tinha forças para chorar. As lágrimas já se
recusavam a sair. Limitava-se a sofrer em silêncio. Sabia igualmente, por
experiência, que uma resposta sua, fosse qual fosse, só iria contribuir para
atear ainda mais o ódio que corroía o homem. Até com os filhos evitava falar ao
telefone na presença do marido, pois este chegava a insinuar que ela o traía
com aqueles. Fora de casa andava sempre com o lenço escuro a cobrir-lhe a
cabeça, não fosse o homem insinuar que se andava a exibir para os outros.
Sim. Se havia inferno, então era seguramente muito
semelhante à sua mísera existência.
Ou
então se quiserem de outro exemplo, ainda mais edificante deste soalho
sentimental, que vai muito para além daquilo que as palavras significam, e que
nos ajudam a construir em nós uma certa realidade física mas também emocional, escutem o inicio do conto: “Fogo Lento”:
(...) Ia até à janela. Abria-a e espreitava para o olival
recortado na escuridão de breu. Procurava o vislumbre de algo que o agitasse.
Nada. Apenas os costumeiros ruídos da natureza que, habitualmente relaxantes, naquela
noite pareciam facas afiadas projectadas em direcção ao seu cérebro febril.
Citando Hercília
Agarez, uma outra autora do nosso tempo e também ela empenhada na
preservação de uma certa identidade transmontana, que acredito existir, diz ela
assim, na sua obra “DOIS HOMENS NUM SÓ ROSTO – Temas Torguianos”: Vem-se verificando a vários níveis, um pouco
por todos os espaços, sejam eles urbanos ou rústicos, a progressiva perda de
uma identidade que poucos se preocupam em preservar. A explosão demográfica
trouxe-nos os candidatos a arranha-céus, a melhoria das condições de vida dos
habitantes das aldeias e a influência da emigração destronaram os materiais da
região em construções com mansardas onde imperam o alumínio dourado, o azulejo
garrido, os dragões, os leões e as águias a servirem de identificação clubista.
Conotados com uma pobreza habitacional de infância, esconjuraram-se o granito e
o xisto. A permissividade das entidades competentes conduziu a um caos
urbanístico e a flagrantes agressões à paisagem natural. Construíram-se
moradias clandestinas que por aí se encontram, de tijolo e cal.
É neste espaço temporal humano, que esta autora esconjura, e
eu também, que se coloca a obra Homens de
Granito. Traz-nos o espaço/tempo das gentes que cresceram em casas de
xisto, o espaço/tempo das pessoas em que o meio sociocultural envolvente era
pobre, um espaço/tempo distante dos grandes centros urbanos e sempre abandonado
pelos decisores, espaço temporal esse que nos influenciou, nos moldou a nós
transmontanos, e nos leva a sentir e a descrever
o mundo de uma outra forma, creio, nem pior nem melhor, mas diferente.
Partamos, então, em busca de um vislumbre desse mundo, dessa
riqueza lexical e gramatical, que faz parte do nosso valioso património imaterial, que o autor aqui materializa:
1. Alice enxotava os pequenos malandros para
poupar o desgraçado ao enxovalho.
2.
Esta
(que era a Alice), arrebatada pelas manápulas daquele, sentiu-se
desfalecer...
3. – Bô!
– Nem bô, nem meio bô! O catchorreco
topou-me do outro lado do rio...
4. – Que a ninguém lhe assuceda! Que a ninguém lhe assuceda!
5.
António
e Afonso desunhavam-se para ver quem acabava a primeira assucada e abria
mais gabeleiros.
6.
–
Pareces um espeque!
Olha que a cântara é pesada! Arrebita,home!
7. – Claro, claro! Desculpa, mas ainda estou meio zonzo.
Entra, entra...
Cito Carlos Reis. Diz
ele que (…) a escrita literária constitui
um acto sincero e não calculado, dispensando a medição de outras tentativas que
não sejam as desse acto primigénio e irreversível.
Esta é talvez a melhor
forma de poder expressar o miolo deste livro. Com um linguajar autêntico, liberta-nos,
transporta-nos no tempo, com ele viajamos pela transcendência dos cheiros agrestes
das serranias transmontanas, viajamos pelo calejado das mãos, pela aspereza dos
sentimentos. Transforma-nos. Ensina-nos a conhecer o passado e leva-nos até às
nossas origens. Estamos, portanto, perante uma obra com uma linguagem vernácula,
genuína, sincera e não precisa de ser medida, como necessitará qualquer outra
qualquer ciência, como afirma Carlos Reis. Ela, a escrita literária, existe de per si.
Para
terminar, quero dizer que tentei nesta minha abordagem descortinar outras
camadas, outros estratos que esta obra encerra. Provavelmente não o terei
conseguido, se assim foi, considerem-nos pequenos aperitivos sobre aspectos do
livro que mais me tocaram. Esse é o grande poder da literatura. O livro toma
dimensões diferentes perante o leitor. As palavras, além de reunificar
experiências, paradoxalmente ganham asas, entram no nosso mundo individual,
suscitam em nós aprovações e negações, limpam-nos de conformismos, abrem-nos
portas e reforçam a nossa personalidade.
Leiam!
Leiam os Homens de Granito porque não
se vão arrepender.
Disse.