sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Histórias de contrabando


Fotos retiradas da net.

O texto a seguir reproduzido constitui na íntegra um artigo e entrevista que fiz para a revista "Mogadouro Vivo", que nunca chegou a ser publicado, porque entretanto a revista fechou.


A ROTA DO CONTRABANDO

"E aí começam ambos a trabalhar, ele em armas de fogo, que vai buscar a Vigo, e ela em cortes de seda, que esconde debaixo da camisa, enrolados à cinta, de tal maneira que já ninguém sabe ao certo quando atravessa o ribeiro grávida a valer ou prenha de mercadoria." (Miguel Torga, in Fronteira - "Novos Contos da Montanha").

Em tempo de fortes restrições ao comércio além fronteiras, em que o Mercado Comum não passava de uma utopia distante da sua configuração actual, as populações raianas portuguesas nunca se coibiram de praticar com alguma regularidade formas de comércio furtivo e ilegal com os nossos vizinhos espanhóis: o chamado contrabando. A única forma de conseguir, a preços acessíveis, bens que escasseavam do lado de cá: sabão, tecidos, tabaco, diversos bens alimentares, etc., bem como de colocar no mercado de "nuestros hermanos" os excedentes nacionais (ao mesmo tempo, e paralelamente ao contrabando, alguns destes homens serviam-se do profundo conhecimento que tinham da fronteira, e dos contactos que mantinham com os "colegas" espanhóis, para auxiliar aqueles que, "a salto", pretendiam mudar de vida e emigrar. Foi assim que os chamados "passadores" deram o seu importante contributo para o grande fluxo migratório clandestino português em direcção ao norte da Europa dos anos cinquenta e sessenta do século passado - a "diáspora dos necessitados").
A história do contrabando que se fazia ao longo de toda a fronteira terrestre portuguesa é riquíssima. Com as variantes geográficas e humanas ao longo dessa extensa fronteira, surgiam aqui e ali particularidades de costumes e de linguagem. Para ludibriar o apertado cerco da autoridade, muitas vezes o contrabandista socorria-se de truques e artimanhas que só ele e os seus pares dominavam. Um desses exemplos, que, infelizmente, se vai desvanecendo com a passagem do tempo e o desaparecimento dos protagonistas, é a "gíria quadrazenha", assim chamada devido à atribuição da sua origem aos contrabandistas naturais de Quadrazais, aldeia raiana do concelho do Sabugal, região de raia seca com fortes tradições nesta "prática mercantil". Através dessa linguagem própria, os contrabandistas chegavam mesmo a combinar idas a Espanha e vendas de mercadoria "nas barbas" dos guardas. Aqui ficam, a título de curiosidade, alguns exemplos de vocábulos da gíria quadrazenha: Alâmpio - azeite; amatriz - amanhã; assuquir - comer; briol - vinho; calcantas - sapatos, pés; cambalache - negócio; cosco - tostão; esgueirante - ladrão; esquilona - hora; facho - guarda; fuganta - pistola; galhal - muito dinheiro; moienes - eu; vunhir - vir (note-se que a origem de cada um dos vocábulos pode provir de diferentes regiões do país, uma vez que existia muito intercâmbio entre contrabandistas e passadores de diversas proveniências geográficas).
Com uma extensa área de fronteira, o concelho de Mogadouro não constituiu excepção à regra nacional e possui igualmente uma tradição histórica na prática do contrabando. De facto, apesar das dificuldades colocadas pelas peculiares características morfológicas das margens do Douro internacional, o contrabando constituiu durante bastante tempo uma importante actividade mercantil do nosso concelho. A prová-lo está a grande densidade de quartéis da Guarda Fiscal estrategicamente colocados pelo Estado português ao longo da linha de fronteira, desde Bemposta até Bruçó (normalmente um no núcleo urbano e outro nas arribas), facto que, por si só, é bem elucidativo da importância que revestia para a autoridade nacional o controlo da actividade contrabandista e da dimensão que esta atingia na região.
A profundidade assustadora e vertiginosa das escarpas do Douro internacional era apenas mais um desafio que se colocava à imaginação e ao engenho de todos os que, arrojadamente, se dedicavam a tão arriscada actividade. A tenacidade e a coragem destes homens, para além dos obstáculos de origem natural, esbarrava ainda em igual tenacidade e espírito de missão dos homens da Guarda Fiscal que patrulhavam noite e dia os trilhos das ribas à procura de interceptar mais um carregamento de cortes de "pana" (bombazina), fardos de bacalhau, ou simplesmente de botas do vinho ou boinas bascas.
Tantas vezes vizinhos, e até amigos, conheciam-se e respeitavam-se mutuamente, interpretando uma espécie de jogo do gato e do rato, construindo pequenas histórias, algumas com um final dramático, outras com final mais feliz, mas sempre carregadas de grande humanismo, numa dimensão que o poder administrativo central nunca poderia perceber na sua sanha persecutória a estes verdadeiros pioneiros do "mercado livre".
São algumas dessas pequenas histórias que pretendemos aqui recordar através de uma pequena conversa com protagonistas desse passado ainda recente e vivo na memória dos mais velhos que conheceram de perto as dificuldades do tempo em que tudo era proibido. Fomos rebuscar velhas memórias de baú com Evangelino Morais, Guarda-fiscal reformado, que cumpriu serviço em praticamente toda a fronteira do concelho. Natural de Bruçó, onde cresceu, conhecia e convivia quotidianamente com alguns dos contrabandistas que, por força da profissão, depois perseguia e procurava deter em nome do superior interesse da Fazenda nacional:
Mogadouro Vivo (MV)- Com que idade é que começou a ouvir falar de contrabando?
Evangelino Morais (EM)- Bem... desde cedo. A gente convivia com os guardas, fui criado ao pé deles, e ouvíamos as histórias que eles contavam...
MV- do contrabando do minério...
EM- Sim do minério, mas também das boinas espanholas, das sapatilhas, casacas...
MV- cortes de tecidos...
EM- sim, sim, a bombazina, e o bacalhau (numa altura de crise que aqui houve) e até espalhadouras de tirar o estrume!
MV- E daqui para Espanha, o que é que se levava?
EM- Daqui para lá levavam ovos, sabão, café e outras coisas...
MV- Quando os produtos contrabandeados chegavam aqui a Portugal, como é que era feita a distribuição da mercadoria?
EM- geralmente era distribuído pelos sítios onde havia mais gente: nas minas, nas pedreiras...
MV- Cá na aldeia, as pessoas também compravam esses produtos?
EM- Também. Os pastores e outras pessoas que compravam as bombazinas, porque eram tecidos mais fortes para o trabalho.
MV-E passadores? Nesta zona havia passadores?
EM- havia. Havia diversos passadores que cobravam dinheiro às pessoas pela passagem. Mas só recebiam quando a senha estivesse completa. A senha era constituída por metade de uma fotografia que a pessoa levava e que, depois de estar a salvo do outro lado, entregava ao passador para este, por sua vez, entregar à pessoa que tinha ficado do lado de cá, e então esta pagar o combinado ao passador.
M V- Em que locais é que costumavam passar?
EM- Nas “Palas” e nas “Canas”, nos locais mais curtos do rio.
MV- Os contrabandistas por norma eram pessoas conhecidas. Os guardas sabiam quem eram?
EM- Sabiam. Por isso é que andavam sempre atrás deles...
MV- E no dia a dia conviviam uns com os outros?
EM- Conviviam. Os contrabandistas geralmente até pagavam uns copos aos guardas para os entreter e para desviar as suas atenções, e depois quando julgavam a maré segura, aproveitavam para fazer a passagem.
MV- Como é que os guardas obtinham as informações para saberem onde e quando é que os contrabandistas iam passar?
EM- A maior parte das informações vinham dos vizinhos, de gente que queria mal aos contrabandistas, e dos próprios colegas, dos concorrentes da mesma profissão.
MV- Os contrabandistas, de um modo geral, podiam considerar-se pessoas perigosas? Andavam armados?
EM- Primeiro não. Quando o contrabando era mais pequeno, não havia grandes perigos. Mas quando começou o contrabando do tabaco e outros contrabandos de grande porte já começou a ser mais perigoso.
MV- Tem alguma história que tenha envolvido tiroteios, trocas de tiros entre guardas e contrabandistas?
EM- Não. Cheguei a ter informações de que a acompanhar certos carregamentos de tabaco vinha gente armada. Mas além disso nunca vi nada de especial. Ouvi falar de histórias de trocas de tiros, mas não nesta zona. Mais lá para baixo, para o Sabugal, que era uma zona de raia seca, de muito contrabando e que causava, às vezes, grandes tiroteios.
MV- Havia algum contacto entre a guarda portuguesa e a guarda espanhola?
EM- Havia, pois claro! Havia reuniões para conversarmos e nos mantermos mais ou menos informados uns aos outros.
MV- E os contrabandistas também tinham contactos com os do lado de lá?
EM- Tinham. Punha-se um de cada lado do rio e combinavam a estratégia para a passagem (o dia e a hora).
MV- Existiam trilhos certos para o contrabando, ou eles variavam muito de locais?
EM- Havia trilhos pisados, mas não eram permanentes. Por exemplo, eles andavam oito dias seguidos no mesmo caminho, mas de repente passavam para outra zona, para tentar despistar os guardas.
MV- Os contrabandistas desta zona tinham algum código de linguagem especial?
EM- Não. Aqui não havia nada de especial. Às vezes uns acenos ou coisa nas tabernas, mas nada de especial.
MV- Qual era a expressão que os guardas utilizavam quando faziam alto aos contrabandistas?
EM- Quando saíamos aos contrabandistas diziamos-lhe: “Faça alto em nome da Fazenda Nacional” – era assim que a lei previa.
MV- Como é que eram feitas as patrulhas?
EM- as patrulhas eram feitas a pé. À chuva e ao frio e ao calor nas arribas.
MV- O contrabando era uma actividade que permitisse aos contrabandistas grandes lucros? Os contrabandistas eram pessoas que ostentavam riqueza?
EM- Não. A maior parte eram pessoas pobres que faziam aquilo para ganhar o pão do dia a dia.
MV- Normalmente eram só homens ou as mulheres também se envolviam?
EM- normalmente eram só homens, porque eram mais resistentes para os caminhos.
Entretanto, a finalizar a nossa conversa, interveio a esposa do Sr. Evangelino, D. Maria Justina, que nos contou uma história engraçada a envolver mulheres: “O meu marido disse que as mulheres não andavam metidas no contrabando, mas também havia mulheres sim senhor. Até houve uma, não digo o nome, mas isto contado por ela, que ia muitas vezes à barragem. Trazia de lá umas galhetas, polvo seco, e outras coisas. E então, numa dessas vezes, estavam os portões da barragem fechados, e ela para passar, encarrapitou-se nos portões e ficou lá presa com as saias (levava-as grandes para esconder a mercadoria). E depois nem saía para trás nem para diante. Dizia-me ela: “como me vi perdidinha!” (risos).
Antero Neto