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domingo, 12 de abril de 2015

A água das casulas...

A figura encarquilhada caminha em direcção a nós com o vagar típico da calma rústica que nos rodeia. Notam-se as dificuldades de locomoção. Terá mais de noventa e cinco anos - informa um dos presentes.
Dobrado sobre a gajata que o auxilia na caminhada, dirige-se ao grupo e saúda:
- Bôs tardes nos dê Deus!
- Deus nos dê bôs tardes! - respondemos em uníssono.
Perscruta-nos com atenção demorada. Estranha a minha pessoa e indaga:
- Quem é este senhor? Não o estou a conhecer.
Explicam-lhe quem eu sou.
- Ah... fui colega do seu paizinho, que no céu esteja. Éramos muito amigos. Que seja por muitos anos...
- Obrigado. - retorqui a amabilidade.
- É servido? prove um môrdo. Olhe que foi a minha mulher que fez o folar. E a cebola é da minha horta. - atirou o anfitrião
- Hum... - pigarreou - bem sabes que já não tenho dentes, nem saúde pra tudo. Até o vinho já me tiraram... - largou com nítida tristeza no olhar. Recompôs o semblante e lançou uma farpa afiada em direcção ao dono da casa:
- Olha lá, se fosse pra descabar a binha, não tinhas tanta gente! -largou entre sorrisos dos circunstantes. Virou-se novamente para mim e disse:
- Eu e o seu paizinho fizemos muitos turnos juntos! Era um bom homem! Ele chegou a falar-lhe de um colega que nós tivemos e que tinha a mania de beber a água em que demolhava as casulas?

- Não! - respondi, com a curiosidade aguçada pela natureza do estranho ritual.
- Era um tipo muito achacado às doenças. Tudo se lhe pegava. Um dia, descobriu que era diabético. E alguém lhe meteu na cabeça que a água de demolhar as casulas, bebida fria, fazia bem aos diabetes. Aquilo era amargo como o dianho. Mas ele emborcava meio litro daquela mistela todas as manhãs. Em jejum!
- E resultou? - perguntei.
- Nunca soube.
- Mas, ele morreu dos diabetes?
- Morrer, morreu. Do quê, não sei! - rematou com uma risada cavernosa, que lhe provocou um ataque de tosse.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

A propósito de um pires de tremoços...

Em dia de descanso do período pascal sabe bem ouvir histórias. Esta decorreu há cerca de sessenta anos atrás. O protagonista, que de pretenso arruaceiro passou a guarda-fiscal e de guarda a tasqueiro, é pródigo em pormenores. Grande parte escapou-me. Apenas retenho os mais relevantes da narrativa.
- Sabe, ó advogado, quem mais mente em tribunal, é quem mais se safa!
Sentencia, sem me dar hipótese de retorquir.
- Estes tremoços são bons pró colesterol. Ainda estão meio amargos.
Vai dizendo, encostado ao balcão do Chop, enquanto manda vir três finos. Eu e o Victor agradecemos.
- Já tenho oitenta anos, sabe?
Não parece. Aparenta menos dez. Preserva a boa figura de outrora.

- Agarrei na piçarra e atirei-lha à cabeça. A sorte dele é que a pedra era mole e esmigalhou-se. Mas, a cabeça botou sangue! Fomos todos pró quartel da guarda. Foi o Riço que nos trouxe no táxi. Quem pagou, não sei. Eu era o mais novo. 
- E mentiu no tribunal? - indaguei...
- Claro! Ia dizer que fui eu? Ai não! Neguei tudo! E não é que o juiz acreditou em mim? Eu era o mais novo, já lhe disse. Aquilo, sabe... eram questões de namoricos. Já vínhamos picados de um baile da festa do Variz. Jogámos todos à pedrada. Eu tanto dei, como apanhei. No tribunal ainda me fiz de vítima. Mostrei uma ferida no braço. Até fui ao médico e tudo. Tinha levado uma calhoada, mas o de lá não ficou melhor! Os outros já tinham perto de trinta. Eu era um garoto! O juiz teve pena de mim e ainda me usou como exemplo e disse: "ponham os olhos nele! Tão novo e a falar a verdade!"
Lá tive que dormir uma noite na cadeia velha. E paguei cem escudos de caução para não ficar preso! Naquele tempo era dinheiro! A minha sorte é que um dos praças da GNR era meu tio. E dormi na tarimba dele. Foi um fartote, porque naquela noite também lá estavam presas umas putas. Eram as "marinheiras". Eram ciganas. Mas eram boas, caraças! Deixou-me ir espreitar à cela delas!
Ah... que tempos, ó senhor advogado! Que tempos...


segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Histórias

Domingo pluvioso não permitiu a programada ida ao ribeiro de Abicheiros. Lá nos juntámos no forno do amigo Álvaro Ruivo a degustar castanhas assadas à lareira e histórias contadas por Ti Américo Rentes (e como as conta bem...).
Contou ele que há coisa de umas décadas atrás estavam Ti Firmino mais a esposa a dormir descansados, quando a parede meeira ruiu, caindo-lhes em cima. O que valeu foi que um ocupante ocasional do leito da vizinha deu pelo sucedido e clamou por socorro.
Chegada a necessária ajuda, lá se resgataram os infelizes do sufoco. Ainda mal refeito, e com o corpo todo inchado devido ao sucedido, Ti Firmino foi a casa do pai de Ti Américo avisar que não podia ir abrir a porta às cabras que exploravam a meias. Ali chegado, disse-lhe:
- "Olhe que eu hoje não posso botar as cabras. Já fui ao outro mundo e voltei..."
O outro, desconhecedor do sucedido e espantado com o aspecto inchado de Ti Firmino, retorquiu-lhe:
- "Pois olha que te trataram lá bem. Vens gordinho!"

terça-feira, 2 de setembro de 2008

O queijo

Foto: Aníbal Gonçalves ("descobrir mogadouro").

Recorri mais uma vez à fabulosa objectiva de Aníbal Gonçalves para ilustrar uma história que corre por estas bandas.
Conta-se que, certo dia, um cigano residente nestas paragens (mais concretamente na área de Zava), habituado a surripiar os fardos de antigamente, que eram pequenos e bastante manejáveis, tentou roubar um destes novos, de forma redonda, como o da foto. Como são enormes, o peso dele fez com que a carroça se empinasse e elevasse a burra de tal forma, que esta quase morria enforcada. Contaram-ma como tendo sucedido efectivamente...

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Carapaujête

Segundo me contaram, Carapaujête era um velho peliqueiro de Vilar do Rei. Chegado aos setentas, ainda sentia forças para satisfazer fêmea. Livre e desimpedido, ansiava por mulher que o completasse.
Um conterrâneo mais arguto, conhecedor dos anseios do ancião, resolveu meter-se com ele. Um belo dia, andava Carapaujête à volta da alquitarra, a apurar a aguardente, o vizinho chegou-se ao pé dele e disse-lhe com o ar mais sério do mundo:
- Ti Alfredo, já ouviu a novidade?
- Não! Qual novidade?
- Acabou de chegar à Cooperativa da vila um autocarro cheio de brasileiras. Todas novas e boas c'mó milho!
- Bô! A sério?
- A sério!
Carapaujête, perante a boa nova, tratou de arranjar transporte para Mogadouro. Azar dos azares, naquele dia não ía ninguém à vila. Sem outro recurso, aparelhou a burra e meteu-se a caminho. Não sem antes deixar uns trancos mais grossos a arder debaixo do pote da aguardente.
Afoito, chegou à Cooperativa a prescrutar as redondezas, em busca das ninfas de Vera Cruz. Não vendo ninguém, dirigiu-se ao encarregado do armazém, o Ti Henrique:
- Ó Henrique, atão onde está o autocarro com as brasileiras?
Este, embora surpreendido com a questão, ouviu a história, e apercebendo-se da trapaça, não se descoseu:
- Está com azar Ti Alfredo. Se tem chegado cinco minutos mais cedo ainda tinha apanhado alguma...
Para cúmulo do desgosto, quando Carapaujête chegou a Vilar do Rei, tinha a potada de aguardente toda pegada!

segunda-feira, 31 de março de 2008

Burro por Lontra

O clássico "gato por lebre" sofreu, na aldeia de Bruçó, uma variação: burro por lontra. Em tempos idos, morava nesta aldeia um guarda-fiscal de nome Teixeira. Fazia parte de uma tertúlia que gostava de um bom "fado" (mudam-se os tempos, mas não se mudam os hábitos... eh,eh,eh...). Como trabalhava perto do rio, prometeu aos "compadres" um repasto de lontra. Mas nunca mais apanhava o raio do bicho. Por isso, um dia resolveu "cumprir" o prometido. Mas sem a lontra. Como havia um vizinho que tinha um burreco com cerca de um mês, comprou-lho. Deu 20 escudos a três rapazolas para que o preparassem (entre os quais o Ti Adérito "Gaiteiro"). Estes mataram-no e esfolaram-no. A esposa do Teixeira cozinhou-o no forno do Ti Pastor, na Barreira.
Os convidados chegaram e deliciaram-se com o rico repasto. Os rapazes estavam em baixo, na adega, a comer azeitonas e a beber vinho. A certa altura, com o fel já meio avinagrado pela pinga, e fartos de ouvir os outros dizerem que aquilo estava delicioso, e como não lhes tocava nada, resolveram abrir o jogo. Um deles colocou a pele do burro à volta do pescoço, agarrou na cabeça do bicho e subiu as escadas. Entrou na sala e disse-lhes:
- Olhai a lontra que estais a comer! Estais a ver a cabeça dela?
Feito isto atirou para a mesa com os restos do burrico.
Segundo conta o Ti Adérito, uns começaram a vomitar; os outros ficaram brancos.
Os rapazes riram-se à tripa forra e aproveitaram para comer o que ainda sobrava na travessa...

domingo, 30 de março de 2008

Histórias de Bruçó

Um destes dias vou ter que me sentar com algumas pessoas de Bruçó. Levar o gravador e, quando houver oportunidade, publicar um livro com as histórias deliciosas que me contam. Uma dessas pessoas é o Ti Américo Rentes. Conhece e conta histórias como ninguém. Aqui vai uma, contada na adega do Manel Aderitinho:
O Ti Valente, que já morreu há muitos anos, era um folgazão nato. Gostava de contar histórias e de entreter a rapaziada. Aos mais novos contava histórias da Lua (quando se começou a falar da ida à Lua pelos americanos). Dizia ele à pequenada que havia uma burra que era capaz de ir até à Lua. E que nesse planeta as ruas eram compostas de moletes, os passeios de bolachas e que os rios eram de vinho. Excepto um, que era de água). os rapazes sonhavam com esse planeta fantástico (numa altura em que não havia televisões, isto era puro ouro).
Mas... o Ti Valente também era malicioso. Um dia, decidiu pregar uma partida ao Ti Parada (também ele já falecido). Quando este lhe perguntou como é que havia de fazer para transplantar umas cabaceiras para Caravelas, o Ti Valente disse-lhe que tinha que arrancar as plantas e deixá-las a secar um pouco ao sol. O Ti Parada assim fez. Deixou-as secar e só depois é que as replantou. Escusado será dizer que nem a primeira vingou...
Quando confrontado com o facto, o Ti Valente, sem perder a compostura, indagou-lhe:
- Mas, olha lá! Tu regaste-as?
E o outro:
- Reguei!
Resposta pronta:
- Está visto! Estragaste tudo, home!
Esta história correu pelo povo, e o último foi alvo da chacota generalizada. Mas, apercebendo-se disso, foi preparando a vingança. E, num belo dia de inverno, quando nevava que Deus a dava, lembrou-se e chegando à porta do Ti Valente, o Ti Parada fê-lo levantar da cama e disse-lhe:
- Ó Ti Valente, olhe que andam umas ovelhas a comer-lhe o pão, lá para Caravelas. Vá lá depressa, senão não salva nada!
O Ti Valente, sem suspeitar da trapaça, calçou os socos e foi num ápice até Caravelas (que dista cerca de 4 km da aldeia!). Ali chegado, não encontrou rasto de ovelha. Zangado, quando encontrou o outro disse-lhe:
- Ó malandro, enganaste-me!
E o Ti Parada respondeu:
- Não acha que estamos pagos?

quinta-feira, 27 de março de 2008

Divagações

O vento gélido fustigava-me a face. Soprava como se não houvesse amanhã. E que saudades eu tinha deste vento! Anos passados junto ao litoral, tinham feito desvanecer esta sensação. O gosto doce e suave da maresia quase tinha apagado da minha memória esta sensação de nudez. Este sentimento de vassalagem às verdadeiras forças da natureza. O prazer era tanto, que nem sentia o frio a penetrar. Foi como se a infância me tivesse absorvido de novo. Como se não tivessem passado por mim os imensos anos de cidade... Como se o tempo não me tivesse roubado a seiva...
Era a terra a reclamar o que era seu!
A voz acordou-me do torpor:
- Anda p'ra dentro e bebe um copo, rapaze! Olha c'aí inda t'atreces!

(Extracto de conto inédito).

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

retalhos

"-Pai!
- Quê?
- Tenho frio...
- Toma o meu casaco, filho.
- Pai!
- Sim, meu filho.
- Tenho fome...
O homem fez um esforço para sustar a grossa lágrima que queria rebentar. Não podia dar qualquer sinal de fraqueza em frente ao rapaz. Contemplou-lhe a tez amarelada, onde se destacavam os olhos enormes e cavos. Afagou-lhe o cabelo rebelde e procurou iludi-lo:
- Não tarda nada e vamos comer um môrdo de toucinho.
Começava a sentir fraqueza. A expressão suplicante do filho fez quebrar todas as forças que ainda o faziam mover. Nem a chuva, nem o vento que fustigava com violência o cabeço despido lhe tinham causado tanta mossa no ânimo."

Excerto do conto inédito: "A minha metade da fotografia"

Antero Neto