terça-feira, 4 de junho de 2013

Homens de granito - texto da apresentação

Homens de Granito – Apresentação
Enquanto apresentador dos Homens de Granito, quero dizer o seguinte:
Porque nenhuma obra pode ser dissociada do autor, dividi esta minha intervenção em 2 partes. Na primeira tentarei dar uma imagem do autor, e muito ficará por dizer, evidentemente, na segunda tentarei abordar da obra Homens de Granito, não só pondo em evidenciando alguns aspectos técnicos, mas também pelo lado das emoções que se me revelaram ao ler esta obra.
I-Parte
ANTERO Augusto NETO Lopes é natural de Bruçó, concelho de Mogadouro, onde nasceu em Junho de 1969.
É licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
É Advogado. Entre outras actividades, foi professor, autarca e dirigente associativo.
É membro da Academia de Letras de Trás-Os-Montes.
Tem publicadas as seguintes obras:
"Serões do Planalto" (contos), 2006;
 "Bruçó – As Memórias Paroquiais de 1747 e 1758. Notas Históricas e Etnográficas" (ensaio), 2010;
"Toleradas em Mogadouro – O Suicídio de Maria Carçôna" (ensaio), 2012.
Colabora esporadicamente com a imprensa regional e com as revistas "Epicur" e "!Bô". Mantém o blogue de divulgação local: “Ho Mogadoyro”.
Além deste livro de contos, que hoje aqui apresentamos, prepara-se para editar, também na Lema d’Origem, um levantamento histórico das marcas judaico-cristãs gravadas nos locais de habitação, pelos Judeus Marranos, durante o período da Inquisição, em todo o Concelho de Mogadouro.
II-Parte


A obra Homens de Granito, está dividida em duas partes distintas. Na primeira parte predominam contos ficcionados, na segunda o autor presta contas, que é como quem diz, presta homenagem a gente que ele conheceu/conhece e a quem reconhece verdadeira humanidade. Esta segunda parte podem até considerar-se micro-contos, no fundo, são linhas de carácter de gente humilde, sem escola, mas com a escola de toda uma vida. Gente rija, de espinha erguida, gente que sobreviveu pelos amargores do trabalho árduo, pelas bofetadas da vida, pela rudeza das serranias e pelo rigor do tempo. Veja-se como ele a caracteriza:
(...) Olhos de granito, cravados em rostos de xisto, petrificados pela Medusa do tempo, que escavou neles sulcos indeléveis que desnudam a rudeza das suas existências.
Bibliotecas vivas que alimentam um universo fantástico e fazem perdurar a memória de um povo. Assim são os homens da minha aldeia.
Um punhado de azeitonas, um naco de trigo, um copo de vinho, uma adega e boa companhia são quanto baste para algumas horas prazenteiras a sorver histórias e contas de memorar e legar aos vindouros. (...)


Portanto, desde já fica patente que estão perante uma obra de cariz rural, mas não está falha de universalismo humano, bem pelo contrário. Digo isto, porque tenho sempre a sensação, e não sei explicar porquê, que nos tempos que vivemos há um certo estereotipo negativo deste tipo de narrativa, por se considerar ser incapaz de atingir a universalidade que sempre se procura na literatura. Seja como for, impressão minha ou não, nesta, isso não acontece, bem pelo contrário! E, para justificar isso mesmo, digo apenas que a alma humana não tem padrões, nem usa carimbos. Somos todos iguais, com maior um menor conhecimento científico, com mais ou menos percepção do mundo que nos rodeia, todos sentimos alegrias, dores, inveja, paixão, todos nós somos magnânimos, mesquinhos... todos nós temos medo do desconhecido, todos nós sentimos amor e ódio, paixão e ternura... Veja-se a ternura do “Marreco”, figura fisicamente grotesca, mas simultaneamente ternurenta:
 Tinha crescido como Marreco e como tal haveria de fenecer. Respondia apenas pela nomeada que lhe tinham colado na infância devido à sua fisionomia inclinada, que parecia prestar vassalagem perene ao mundo. O Marreco era ademais um ser dotado de pouca inteligência. Pelo menos era assim que pensavam os seus conterrâneos. Na comunidade era tido como um pobre de espírito, que à semelhança dos bobos da corte entretinha com as suas graçolas descabidas quem se dava ao trabalho de o escutar.
O seu público preferido eram as crianças. De uma maneira geral, ninguém mais perdia tempo com o Marreco. A figura castiça e o trato irrequieto emprestavam-lhe as características necessárias para cativar a audiência infantil. O facto de já ser adulto, mas ao mesmo tempo mais frágil que uma vulgar criança, transformou-o no alvo predilecto das brincadeiras dos petizes, que gozavam à tripa forra com o indigente.


Ou então, se quiserem outro exemplo desse universalismo humano, vejam a descrição do António e do Afonso, jornaleiros que se sentem ambos apaixonados pela Anita:

António e Afonso desunhavam-se para ver quem acabava a primeira assucada e abria mais gabeleiros. Este despique pouco habitual não deixava de causar alguma estranheza na mente inocente de Afonso. Mas não queria ficar mal visto pelos outros. Só o António conhecia a verdadeira razão de tanto afoitismo. Ele queria brilhar aos olhos de Anita. Queria parecer o mais valente e determinado dos segadores, para que um dia, quando ela tivesse mesmo que escolher, escolhesse o mais forte. Aquele que lhe garantiria, pela força de trabalho, maior fartura em casa. Para ele, tinha começado ali, com a confidência do amigo, uma verdadeira compita pela conquista dos favores e graça da jovem. O melhor venceria. E ele queria ser o melhor.

Este trecho, além de evidenciar esta forma de amar, e que nesta leitura pretendi evidenciar, eventualmente para alguns estranha, considero-a riquíssima do ponto de vista humano e dá-me a deixa necessária para realçar a dureza deste sentir: (...) era preciso ser o melhor para que fosse escolhido, e não faltasse a fartura em casa (...), diz o autor. Faz-nos lembrar a Teoria Darwiniana, e a sua Luta pela Sobrevivência. E era de facto assim, no rigor da vida sobreviviam os mais fortes.

Ao terminar a leitura desta obra, a primeira sensação que tive foi ter acontecido um diálogo com a história. Não a história dos grandes feitos, dos grandes estrategas, dos pensadores… É a história, da história inteira, a história do corpo e da alma das pessoas que vivem, pensam, amam e se exprimem de forma simples, sem a padronização que a escola nos ensina. No fundo, é também a história da edificação da língua portuguesa. É a história de um linguarejar foneticamente autêntico, a história de um linguarejar lexical que está prestes a terminar e que urge preservar porque todos essas pedras possuem uma riqueza cultural incalculável e são os alicerces dessa grande façanha que é a língua portuguesa. Dito de outra forma: não há futuro sem memória, é um lugar comum, e ele, autor, ciente desta grande verdade, vai-nos tecendo, pedra sobre pedra, palavra sobre palavra um grande memorial às gentes que existiram sem nunca terem existido, um templo com uma dimensão paisagística, sentimental, cultural… que só a magia das palavras interligadas nos permite fazer. Veja-se:
Veja-se o início do conto O Sobreiro:
 Entrou-me pelo escritório precedido de grandes salamaleques:
Vocelência dá licença?
Entre se faz favor. Sente-se. Então, diga lá ao que vem.
A figura, de aparência insignificante, meio mirrada, com o queixo estribado na gajata, transparecia um olhar de estranha altivez.
Olhe, tenho oitenta e oito anos e é a primeira vez que entro num escritório de advogado.
Pois eu já entrei muitas vezes! – atirei, para criar boa disposição – então, e o que é que o traz cá?
Foi vocelência que me escreveu uma carta.
Ah! – exclamei, sem me lembrar muito bem de que carta estaria ele a falar.
Foi por môr de um sobreiro, nos “Tchaugarços”!
Ah, pois...
Olhe que ele é um ladrão! O senhor doutor já lhe apanhou o dinheiro? Ponha-se a pau com ele. Olhe que já vigarizou muitos…
Ah é?
O senhor pode não acreditar, mas atente no que lhe eu digo.
E começou então com um extenso rol de acusações contra o meu cliente, fazendo-o possuidor de um espírito maléfico, altamente pernicioso para a sociedade em geral e para a aldeia em particular. Ele tem os da junta comprados... Ele até prá mulher é falso...
O senhor doutor é casado?
Sou sim.
Então, estime- a (...)
Fotos: Isaías Cordeiro
Há neste pequeno texto uma certa sonoridade das palavras e uma certa forma de expressão muito típica e muito autêntica. Diria até que há um certo caracter polifónico e melodioso nas palavras e nas frases, que aqui realço, e que é patente ao longo do texto, mas não é único. Se considerarmos a obra como um  todo, ela possui também essa polifonia muito própria da região. Emprego aqui a palavra “polifonia”, não com o sentido que o termo pode adquirir, numa primeira abordagem, mas porque a obra contém, em si mesma, muitas vertentes do mesmo monte, ou se quiserem, muitas abordagens simultâneas e integradas do sentir das gentes do planalto mirandês: Há nela sentimentos, história, património linguístico... toda essa abordagem humana está integrada nela e fazem com que os Homens de Granito tomem uma dimensão que ultrapassa a mera narrativa ficcional. Considero que não é mais um livro de contos de um determinado espaço/tempo. É muito mais do que isso. Há nele uma dimensão sociocultural que não pode, nem deve ser descurada e, nesse sentido, atrevo-me a dizer que há até alguma intervenção social, como, eventualmente, existirá em muita boa literatura sem este cariz rural. E, desta forma concluo, e reafirmo a tal impressão que me vai pela cabeça e que atrás ficou expressa. Ambas as narrativas estão ao mesmo nível e merecem o mesmo tratamento. Ponto.
Nos Homens de Granito, o autor, possui a consciência plena da grandeza e da pequenez que encerra qualquer ser humano. E não há melhor exemplo que o conto da “Redenção”. Não o vou explanar para me fazer compreender, terão que o ler, vou, no entanto ler a caracterização das 2 personagens, em oposição, onde esse dualismo, no final do conto, atinge o seu grau mais elevado:
Marcolino tinha ficado incapacitado para o trabalho mercê de um acidente com a motorizada, que levou à amputação da perna direita. O outrora homem vigoroso e dedicado ao trabalho e à família, tinha dado lugar a um inútil amargurado, que passou a afogar as mágoas nas tavernas, enquanto jogava aquilo que tinha e o que não tinha.
 (...)
Elisa, já não tinha forças para chorar. As lágrimas já se recusavam a sair. Limitava-se a sofrer em silêncio. Sabia igualmente, por experiência, que uma resposta sua, fosse qual fosse, só iria contribuir para atear ainda mais o ódio que corroía o homem. Até com os filhos evitava falar ao telefone na presença do marido, pois este chegava a insinuar que ela o traía com aqueles. Fora de casa andava sempre com o lenço escuro a cobrir-lhe a cabeça, não fosse o homem insinuar que se andava a exibir para os outros.
Sim. Se havia inferno, então era seguramente muito semelhante à sua mísera existência.

Ou então se quiserem de outro exemplo, ainda mais edificante deste soalho sentimental, que vai muito para além daquilo que as palavras significam, e que nos ajudam a construir em nós uma certa realidade física mas também emocional,  escutem o inicio do conto: “Fogo Lento”:

(...) Ia até à janela. Abria-a e espreitava para o olival recortado na escuridão de breu. Procurava o vislumbre de algo que o agitasse. Nada. Apenas os costumeiros ruídos da natureza que, habitualmente relaxantes, naquela noite pareciam facas afiadas projectadas em direcção ao seu cérebro febril.

Citando Hercília Agarez, uma outra autora do nosso tempo e também ela empenhada na preservação de uma certa identidade transmontana, que acredito existir, diz ela assim, na sua obra “DOIS HOMENS NUM SÓ ROSTO – Temas Torguianos”: Vem-se verificando a vários níveis, um pouco por todos os espaços, sejam eles urbanos ou rústicos, a progressiva perda de uma identidade que poucos se preocupam em preservar. A explosão demográfica trouxe-nos os candidatos a arranha-céus, a melhoria das condições de vida dos habitantes das aldeias e a influência da emigração destronaram os materiais da região em construções com mansardas onde imperam o alumínio dourado, o azulejo garrido, os dragões, os leões e as águias a servirem de identificação clubista. Conotados com uma pobreza habitacional de infância, esconjuraram-se o granito e o xisto. A permissividade das entidades competentes conduziu a um caos urbanístico e a flagrantes agressões à paisagem natural. Construíram-se moradias clandestinas que por aí se encontram, de tijolo e cal.

É neste espaço temporal humano, que esta autora esconjura, e eu também, que se coloca a obra Homens de Granito. Traz-nos o espaço/tempo das gentes que cresceram em casas de xisto, o espaço/tempo das pessoas em que o meio sociocultural envolvente era pobre, um espaço/tempo distante dos grandes centros urbanos e sempre abandonado pelos decisores, espaço temporal esse que nos influenciou, nos moldou a nós transmontanos, e nos leva a  sentir e a descrever o mundo de uma outra forma, creio, nem pior nem melhor, mas diferente.

Partamos, então, em busca de um vislumbre desse mundo, dessa riqueza lexical e gramatical, que faz parte do nosso valioso  património imaterial, que o autor aqui  materializa:

1.       Alice enxotava os pequenos malandros para poupar o desgraçado ao enxovalho.
2.       Esta (que era a Alice), arrebatada pelas manápulas daquele, sentiu-se desfalecer...
3.       – Bô!
     – Nem , nem meio ! O catchorreco topou-me do outro lado do rio...
4.       – Que a ninguém lhe assuceda! Que a ninguém lhe assuceda!
5.       António e Afonso desunhavam-se para ver quem acabava a primeira assucada e abria mais gabeleiros.
6.       – Pareces um espeque! Olha que a cântara é pesada! Arrebita,home!
7.       – Claro, claro! Desculpa, mas ainda estou meio zonzo. Entra, entra...

Cito Carlos Reis. Diz ele que (…) a escrita literária constitui um acto sincero e não calculado, dispensando a medição de outras tentativas que não sejam as desse acto primigénio e irreversível.

Esta é talvez a melhor forma de poder expressar o miolo deste livro. Com um linguajar autêntico, liberta-nos, transporta-nos no tempo, com ele viajamos pela transcendência dos cheiros agrestes das serranias transmontanas, viajamos pelo calejado das mãos, pela aspereza dos sentimentos. Transforma-nos. Ensina-nos a conhecer o passado e leva-nos até às nossas origens. Estamos, portanto, perante uma obra com uma linguagem vernácula, genuína, sincera e não precisa de ser medida, como necessitará qualquer outra qualquer ciência, como afirma Carlos Reis. Ela, a escrita literária, existe de per si.
Para terminar, quero dizer que tentei nesta minha abordagem descortinar outras camadas, outros estratos que esta obra encerra. Provavelmente não o terei conseguido, se assim foi, considerem-nos pequenos aperitivos sobre aspectos do livro que mais me tocaram. Esse é o grande poder da literatura. O livro toma dimensões diferentes perante o leitor. As palavras, além de reunificar experiências, paradoxalmente ganham asas, entram no nosso mundo individual, suscitam em nós aprovações e negações, limpam-nos de conformismos, abrem-nos portas e reforçam a nossa personalidade.
Leiam! Leiam os Homens de Granito porque não se vão arrepender.


Disse.